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Entrevista: Tasha & Tracie Okereke

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Capítulos da vida de um homem invisível

Aquelas mãos negras sempre passeando entre as páginas de algum livro. Qual seria o escolhido de hoje? Algum de Mário Quintana? Monteiro Lobato, talvez? Ele disse que também gosta de filosofia.

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Rua Augusta (Foto: Lara Amback)

Certo dia, enquanto descíamos a movimentada Rua Augusta, localizada no centro de São Paulo com as cabeças cheias de preocupações – algo que faz parte do cotidiano de muitos que vivem na Selva de Pedra – nos deparamos com uma cena incomum, pelo menos aos nossos olhos. Lá estava ele, sentado em um batente ao lado de uma pequena pilha de livros e de uma mochila preta, onde carregava tudo o que tinha, com a cabeça baixa e sua atenção totalmente voltada à leitura. “O fato de um morador de rua ler, incomoda algumas pessoas, para elas não tenho motivo para ler”, diz Claudemir.

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Claudemir sentado conversando com uma mulher (Foto: Lara Amback)

Basta observá-lo de longe por um tempo que é possível ver a quantidade de pessoas que param para conversar com ele por uns minutos. “As pessoas passam aqui e me dão livros. Já tenho vários, preciso fazer alguma coisa com eles, não tenho como guardar todos. ”

Deixa escapar um orgulhoso sorriso ao falar que veio de uma grande família de sambistas. Sua mãe era atendente de enfermagem e tinha apenas 6 anos quando seu pai faleceu, deixando mais cinco filhos além dele.

Nascido em Campinas, interior de São Paulo, ele conta quanto o crescimento da cidade afetou a sua vida e de sua família: “O sistema não inclui todos, sempre tem um grupo de pessoas, uma minoria que não cabe”.

Antes mesmo de se apresentar, faz questão de deixar claro que viver na rua não foi uma opção, chegou aqui com o objetivo de conseguir um emprego e se estabelecer, mas a realidade mostrou-se diferente. “Quando alguém fala que mora em São Paulo logo imaginam que vamos à padaria tomar um café e comer pão na chapa todos os dias. O emprego é pras pessoas que já têm estrutura”, fala Claudemir.

Sempre teve grande amor ao conhecimento, mas a falta de dinheiro para comprar materiais escolares o impediu de continuar os estudos, mesmo assim a leitura sempre se fez muito presente em sua vida como uma forma de passar o tempo. “Antigamente não era todo mundo que tinha TV. ”

Trabalhou por muito tempo em uma metalúrgica na sua cidade natal. Após mudar-se para São Paulo, percebeu a dificuldade em conseguir emprego e, assim decidiu abandonar a área que sempre atuou e passou a realizar trabalhos informais como cortador de grama, entre outras oportunidades que surgiam ao longo do tempo.

Após alguns meses sem opções começou a trabalhar e residir em um circo, situação que permaneceu por 2 anos. “Ganhava R$ 7,50 por semana, não pagava moradia, mas não era o suficiente pra sobreviver”, comenta Claudemir sobre a desvalorização dos seus serviços.

Vive nas ruas há 10 anos, não teve filhos e viu a família pela última vez em 2010. Inevitável não perceber o desvio do olhar quando pensa no assunto, por um instante perde totalmente a atenção.

Atualmente divide o batente com um amigo que conheceu na própria Augusta, ele surgiu inesperadamente durante nossa conversa, fez uma pergunta à Claudemir e, depois da resposta, saiu.

Em certo momento seus olhos se voltam para um carrinho do outro lado da calçada, seu dedo se levanta em direção a ele. Vemos dois cadernos escolares em bom estado, hoje aos 46 anos o que ele realmente quer é melhorar a escrita e em matemática. Não foram poucos os momentos que ele citava algo relacionado a história do Brasil e da colonização, estava mais interessado em focar a conversa em conhecimentos gerais do que em sua própria trajetória. E assim ofereceu a única coisa que não havia perdido, o seu conhecimento.

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Carrinho do Claudemir (Foto: Lara Amback)

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Com o pouco se fez muito

Na periferia de São Paulo, há diversas histórias que precisam ser contadas. 

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Foto: Lara Amback

As gêmeas Tasha e Tracie Okereke moradoras do Jardim Peri, zona norte de São Paulo, são consideradas as “it-girls”, ou melhor, “it-favela” da periferia brasileira. Inspirações dentro da quebrada, as meninas possuem o blog “ExpensiveShit” que traz conteúdo de moda, empoderamento, cultura e história do povo negro.

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Família Okereke (Foto: Acervo pessoal)

O pai, Chynke Okereke é chefe de cozinha e Dj, imigrou da Nigéria para o Brasil em 1994, com o sonho de uma vida melhor. Nesse mesmo ano conheceu a mãe das meninas. Eles ficaram juntos por um ano antes de serem pais das gêmeas, que nasceram em 15 de junho de 1995.

As gêmeas tiveram uma infância conturbada, cresceram em meio ao desafeto de seus familiares e uma longa jornada se iniciou, com muitas dificuldades, após a separação dolorosa dos pais. Sentadas na laje da sua casa, Tasha e Tracie, hoje com 22 anos, relatam: “Nossa avó dava tudo pro meu tio e maltratava a gente, era o mesmo que ela fazia com a nossa mãe e com a nossa tia. Ela dava pão adormecido pra gente, ‘as paradas’ velhas… e pro meu tio era do bom e do melhor, sem contar que só podíamos comer quando ele não estava em casa. A gente sabe que ele sabia”.

Ninguém disse que seria fácil. Foram tantas  coisas que as irmãs enfrentaram juntas que  chegou um ponto em que uma se tornou a  estrutura da outra. “Fortalecemos juntas”,  conta Tasha.

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Tasha e Tracie Okereke (Foto: Acervo pessoal)

Tracie lembra de um acontecimento que marcou sua infância, ainda quando moravam com o seu pai, no Peruche, zona norte de São Paulo. Sentada de frente para a irmã, ela conta que naquela noite sentiu o colchão que dividiam molhado.
“Eu acordei no meio da noite, senti que o lençol estava molhado e a Tasha tinha feito xixi na cama. A luz estava acesa e eu estava ouvindo uns gritos. Eu abri o olho, e quando eu vi tinha uma arma na minha cara. Tasha já tinha acordado antes e ela estava tremendo.”

Não há dúvidas de que o laço delas se intensificava a cada acontecimento. Por mais que o pai fosse chefe de cozinha, ele já tinha passado por poucas e boas. Durante 9 meses, ficou preso por se recusar a pagar propina aos policiais que forjaram a existência de cocaína em seu próprio restaurante.

Seria mágico dizer que tudo isso é mentira, e que a infância dessas mulheres foi como qualquer outra. Mas a desigualdade social é uma realidade gritante, ainda mais quando se é negro, pobre e periférico. “Eu já vi um cara chamar meu pai de macaco dentro da casa dele”, conta Tracie.

O pai, por ser africano era considerado um homem rico, isto acabava com o psicológico das irmãs, que não podiam sair desacompanhadas ou deixar a casa vazia, conta Tracie. “Invadiram a nossa casa, alguém do Peruche achou que tínhamos muito dinheiro”.

Após a pré-adolescência, elas foram morar com a mãe, que já havia perdido toda a fase de descoberta das meninas. As gêmeas passaram por dúvidas que toda adolescente enfrenta na fase em que as mudanças começam a aparecer e que o pai delas não sabia lidar. “Ele dava uma viajada também”, conta Tasha e Tracie aos risos.

Porém, a ausência da mãe na vida das filhas não foi voluntária. Em meio à infância das irmãs e a separação do marido, ela entrou no tráfico internacional, na esperança de ter condições de criá-las. Mas o que não sabia é que os homens para quem trabalhava já tinham tudo programado. Seria barrada pela polícia do aeroporto para que outra pessoa, com mais drogas, pudesse passar despercebida. E foi nessa circunstância em que ela foi presa e não viu as filhas crescerem. O cárcere durou 4 anos e 8 meses.

Quando saiu da prisão, a família enfrentou dificuldades financeiras, pois na época, a mãe das irmãs começou a trabalhar como assistente de telemarketing, com salário fixo de 500 reais, pagando aluguel de 350 reais, contas de luz, água e com duas filhas para criar. “Não sobrava nada”, contam as irmãs.

E mais uma vez a desigualdade social bate à porta das meninas, que tentavam conseguir emprego para ajudar a mãe e manter a casa. Mas não era tão fácil assim. Sem estarem arrumadas, maquiadas, usando roupas e sapatos em bom estado em uma entrevista, recebiam muitas respostas negativas. “De vez em quando tinha um trampo pra fazer, porque a gente vivia nessas agências de adolescentes. Só que não é só querer trabalhar, você tem que ter roupa e maquiagem.” Elas relatam que as amigas conseguiam empregos de menor aprendiz e diziam que era fácil, mas fácil para quem?  “A gente sentia a diferença”, diz Tracie.

Diante de toda dificuldade, as irmãs tiveram que aceitar os trabalhos que apareciam, como gráfica, arrematadeira da Zara etc. “Um trampo desumano… a gente trabalhava uma semana pra ganhar 50 reais”, contam as irmãs. E mesmo sua mãe fazendo bico como diarista, a renda da família era muito baixa, até mesmo para comprar o necessário.

As irmãs ganhavam roupas de amigas da sua mãe, dos patrões e todo o tipo de doação. E mesmo quando era apenas em datas comemorativas, como Natal, ano novo e aniversário, elas tinham no bolso em torno de 50 reais para dividir entre as duas, e foi quando elas começaram a frequentar brechós e lojas de queima de estoque. “Íamos à loja da dona Maria que era de quebrada, tinha umas blusas de 4 reais, umas calças de 15 reais, eram novas, porém com defeito do Brás. Mas se a gente conseguisse comprar uma calça, era uma calça pro ano inteiro” Acrescenta Tracie.
O dinheiro não era o suficiente para adquirir roupas novas, mas elas faziam o velho se tornar novo e isso nunca foi um problema, até porque com as referências que tinham, ganhar roupa de pessoas aleatórias era incrível no ponto de vista delas. “A gente até gostava de ganhar roupa de gente mais velha, porque dava pra fazer mais coisa e ter outra estética.” Conta a Tracie.

O pouco que elas tinham acabava se tornando em muito, a criatividade falava mais alto e começaram a customizar todas as roupas que ganhavam e que compravam com referências africanas que vieram de berço, sempre observaram como seu pai e como os amigos dele se vestiam. Desprenderam-se do comum e inovaram o conceito de moda visto como “padrão”. Sem contar nas capas de discos que ouviam, era muita referência para pouco pano.

Foi quando Vinicius, mais conhecido como Mc Bitrinho, irmão de consideração das meninas, as chamou pra conhecer a batalha de rap na Santa Cruz, até então só conheciam o trivial do rap nacional, “a gente não sabia que tinha todo esse movimento do rap nacional de gente nova, só conhecia o meu irmão” conta Tasha.

Nessa época o rap nacional estava tomando um novo formato, novos rostos estavam surgindo, com exemplo do Emicida, que nos meados de 2013 passou a ganhar as batalhas de rap da Santa Cruz. As irmãs passavam bastante tempo nos estúdios de gravação acompanhando o irmão e absorvendo muita referencias musical diferente das que já tinham. “nosso pai era DJ também, tinha muita música em casa” – Tasha.

Com influencia de alguns amigos, como Drik Barbosa, também Rapper e sua irmã Kelly, que sempre admirou os looks que as irmãs criavam – “elas falaram que ia fotografar todo o dia que vissem a gente, porque a gente tinha que fazer alguma coisa”. conta Tasha. E com o computador velho que foi presente do tio, montaram o blog Expensive Shit no intuito de ensinar a customizar sem gastar muito, o que as meninas eram especialistas.  “A gente fez umas fotos de madrugada, levantamos o colchão com o lençol na frente e minha mãe ajudou” conta Tasha.

Com o nascimento do Expensive Shit, as meninas começaram a trabalhar mais o lado criativo, e não era só com roupas, mas com penteados também, sempre voltados as mulheres negras. Com o tempo as irmãs ganharam visibilidade na mídia e muita gente passou a acompanhar o trabalho delas dentro e fora no mundo digital, pois passaram a tocar nas festas em que freqüentava. “A gente também começou a fazer festas na nossa quebrada e também tocávamos, pra fazer com que o pessoal conhecesse mais sobre a nossa cultura, além de desconstruir a ideia de que a favela é um lugar ruim”.

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Vista da periferia no bairro Jardim Peri (Foto: Lara Amback)

Em meio de tantos desafios que a vida trouxe, decidiram em 2014 revolucionar a maneira de viver e repassar a comunidade e ao mundo, a visão que enxergam a vida por conta de tantas histórias que viveram.  Cheias de energia e garra, moram e se mantêm sozinhas através de projetos sociais e patrocínios, mas a meta é não sair da onde moram enquanto não fizer a diferença, e isso é o que as motivam para continuarem lutando.

Clique e assista ao vídeo:

It-favela: Tasha & Tracie Okereke

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Editoria: Perfil

Texto: Karen Suellen, Maria Daniela, Nathalia Rosa e Giulia Miranda

Revisão: Lara Amback e Raila Santos

Entrevistas: Karen Suellen, Nathalia Rosa e Lara Amback

 

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